No primeiro dia de abril, ela saiu da gaveta logo às 7h da manhã. Nem um bom dia, só um grande monte de chocolate ao leite - aquele doce, gentil, mas grudento. Logo em seguida veio o chocolate branco. Mimado, derrete fácil demais e se recusa a firmar direito sem ajuda.
Assim que a cozinha esvazia e os últimos chocolates vão para a geladeira, ela relaxa e se estica toda, fazendo estalinhos suaves de silicone querendo voltar à forma original. No fundo, no fundo, ela tem vontade de moldar sabonetes artesanais, velas, ou qualquer outra coisa que não seja sazonal. Mas a tradição da páscoa pesa sobre seus ombros flexíveis.
No meio da semana, ela recebeu chocolate amargo. Ele é intenso, elegante, cheio de presença. Ele chega com seus 85% de cacau falando baixo, com voz grave, valorizando cada curva da forma, deixando a bichinha toda confiante.
Ainda assim, ela sente uma invejinha das forminhas em formato de estrelinha e de coração. Com ela é sempre a mesma coisa: coelho, coelho, coelho. Nunca um foguete. Nunca um unicórnio.
Esse ano, do nada, apareceu um chocolate rubi, todo rosado e exótico, dizendo que vinha da Bélgica e que era o novo queridinho da culinária. Bonito? Muito. Diferente? Total. Mas confuso. Ele escorre torto, endurece estranho. A cozinha toda ficou encantada com ele, mas a forminha ficou tensa, tentando não rachar de pressão. O rubi é temperamental.
Hoje é sexta-feira e ela está vivendo a vida no modo automático. A cozinheira meio que lavou a forminha de qualquer jeito com água morna, mas ela queria mesmo era tomar um banho decente, ter um spa de secagem no escorredor de inox, receber massagem de um pano macio de algodão. Tá vindo aí um chocolate ao leite de novo, para um combo com branco. E ainda vai ter gliter comestível. Isso gruda, gruda muito. Vai ter purpurina colada até o almoço de domingo.
Ela anda se sentindo num campo de batalha. Entre uma leva e outra de bombons, ela ouviu o micro-ondas reclamando das horas extras. A espátula caiu no chão e fingiu que não dava pra continuar. Mas a forma de silicone segue lá, firme, flexível, incansável.
No domingo, vai ter silêncio. Ela vai acordar num cantinho da pia, virada de cabeça pra baixo, escorrendo os últimos pingos de água antes de ser guardada até o ano que vem para um novo hiato de 11 meses até a volta triunfal da renda extra da páscoa.
Sobre as Coisas
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Que texto delicioso! Adorei a fluidez das palavras e a perspectiva e humor dos utensílios!